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O câncer bagunçou minha vida...

O câncer, como você já deve saber a esta altura, se formou porque - resumindo muito - alguma célula sua, ao se dividir (coisa que elas fazem o tempo todo), mandou uma mensagem errada pro código genético da nova célula (o que também acontece com frequência), mas a nova célula não... "percebeu". Aí ela começa a crescer e a se dividir sem parar, até formar uma massa, um tumor.


Agora me diga uma coisa... Quando o médico te disse "você tem um tumor", você imediatamente passou esse negócio pro topo da sua lista de maiores problemas no mundo pra resolver?

Aí eu estou aqui torcendo pra que você tenha procurado o melhor centro de tratamento possível ou o médico mais indicado pro seu caso e que esteja dentro das suas possibilidades (claro, torcendo mais ainda pra que você tenha condições financeiras, geográficas, de deslocamento e/ou que o sistema público esteja funcionando pra você, porque sabemos que Saúde no Brasil é um desafio por si só) e tenha iniciado o tratamento (ou esteja pelo menos considerando iniciar).


Te pergunto de novo: como ficou sua lista de maiores problemas?


Tem gente que, sem brincadeira, depois que começa o tratamento, nem liga mais pro tumor (ou nem tanto).


Não porque isso deixou de ser importante, porque se afeiçoou ao negócio ou porque perdeu a noção de que todos os problemas que vieram depois se devem a ele.


Mas porque ele muda toda a rotina e a estrutura da vida das pessoas - tanto de quem está doente quanto de quem acompanha.


Não é incomum que as pessoas tenham que se mudar de cidade ou Estado pra receber o tratamento.


Ou que tenham que deixar seus empregos ou atividades cotidianas e de lazer, tanto devido às recorrentes internações quanto por conta do risco de infecções (pela baixa no sistema imunológico).


Essa situação não tem muito a ver com "tirar férias" e, por mais que algumas pessoas insistam em tentar te consolar assim, só quem está vivendo esse momento sabe o problema que isso acaba se tornando.


Por questões financeiras, por gostar do faz, por se sentir útil ou por qualquer outro motivo, o trabalho faz uma tremenda falta pra quem tem de se afastar.


Além disso, sair de uma posição de independência, de autonomia e muitas vezes de provedor ou provedora, para uma situação de dependência (parcial ou total) e recebedor/ recebedora de cuidados, por vezes, vira motivo de desespero, desgosto e revolta.


Com tudo isso, a rotina pode se restringir a idas ao hospital e ao confinamento doméstico, e a convivência fica intensificada com cuidadores e profissionais de saúde, podendo ter início os problemas de relacionamento, humor deprimido, sentimentos de culpa, isolamento, irritabilidade, sensação de abandono.


Olha só o que eu vejo por aí: a pessoa passa a sentir vergonha por ter a doença e a não querer ver ninguém, e ao mesmo tempo sente raiva e frustração porque as pessoas a "abandonaram"; não quer preocupar as pessoas queridas e passa a esconder sentimentos, pensamentos sobre o que está acontecendo, e as pessoas se preocupam mais ainda por não terem a dimensão de como a situação está afetando quem está enfermo; questões burocráticas, como senhas de contas bancárias, testamentos etc, passam a circular na cabeça de todos, mas ninguém quer ser o primeiro a tocar no assunto - quem está em tratamento, por medo de dar a impressão de que está desistindo ou com medo, quem está acompanhando, por não querer desanimar quem está doente.


Dá um nó na cabeça, não? Isso tudo sem contar as questões relativas ao tratamento em si.


Agora, por mais que isso tudo seja relativamente "normal" (já que acontece com muita gente que passa por situações desse tipo), não quer dizer que temos que deixar rolar e esperar passar, simplesmente porque muitas vezes isso não passa sem deixar sérias consequências.


Além do incômodo e preocupação constantes que esses temas geram, tudo isso pode trazer complicações - nos relacionamentos, nos assuntos burocráticos, na saúde emocional.


Ficar triste o tempo todo, por exemplo. Por mais motivo que se tenha, não deve ser encarado como a única coisa a ser feita. Isolar-se não impede que as pessoas se preocupem, mas faz com que sua vida gire apenas em torno do câncer - e isso não é um desperdício?


Acompanhar o crescimento (ou a queda) do cabelo, dia após dia, é mais interessante do que acompanhar o crescimento dos seus filhos, sobrinhos e netos?


A depressão não pede passagem, mas avisa e, quando chega, é difícil segurar. É comprovada a influência da depressão, da ansiedade constante e do stress no nosso sistema imunológico - exatamente aquele que precisa estar bem para que o tratamento corra da melhor maneira possível.


Por isso, chore quando tiver que chorar, você tem direito de querer ficar em silêncio por um tempo, mas procure não deixar que isso tome conta dos seus dias.


Lazer precisa estar em pauta, sempre que possível e respeitando seus limites.


Questões burocráticas devem ser mencionadas, com jeito e o esclarecimento de que não é um sinal de desistência, mas de precaução.


Buscar o Serviço Social do hospital ou unidade de tratamento costuma ser de grande ajuda no conhecimento de unidades de apoio (como as casas de apoio pra quem reside fora da cidade de tratamento, por exemplo) e dos benefícios a que você tem direito como paciente de câncer.


Psicoterapia - acredite - não é só "coisa de louco"; ela se ocupa tanto de pessoas com transtornos psiquiátricos, como de pessoas emocionalmente abaladas momentaneamente (por estarem enfrentando uma situação adversa, traumática, problemas de relacionamento etc), e também de pessoas "sadias", que buscam desenvolvimento e crescimento pessoal, profissional ou em qualquer área da vida que mereça foco especial.


Você pode buscar esse tipo de ajuda no próprio hospital onde se trata, no seu convênio médico, na rede pública e em clínicas-escola de faculdades de Psicologia, além do particular.


E por mais que você não acredite que vai te ajudar, se tiver oportunidade, abrace, como a tudo o que for disponibilizado pro seu fortalecimento e conforto nesse momento. Nenhuma ajuda é demais, concorda?

Não digo que é fácil manter o foco na vida (e não na doença), afinal de contas as recomendações são descanso, evitar sair, evitar contato com muita gente, evitar isso e aquilo, mas precisamos saber dosar tudo e adaptar as possibilidades, porque resguardo não quer dizer isolamento. Participe ativamente do seu tratamento.


Você está doente, mas ainda está vivo? Então continue vivendo, certo?!



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